segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A exceção que confirma a regra


Peguei um trânsito desgraçado, dentro do 875-C, sentido Moema. Não andava nada na Faria Lima, pra lugar nenhum. Não tardei a descobrir porquê. Havia uma Blazer azul escura, com os vidros estilhaçados e a lataria escandalosamente perfurada. Ao lado, policiais da ROCAM e da ROTA posavam de escopetas e pistolas em riste, ostentando uma presa humana desfigurada. Jazia ao lado de seus coturnos, um rapaz de chinelo, "cor padrão" como a minha, sem camisa, de bermuda surrada. Estava coberto de sangue e, de dentro do ônibus parado, não era difícil identificar pelo menos cinco furos de bala do pescoço pra cima. Vi, olhei pra frente, não olhei mais. Nem precisava: um registro fotográfico da cena me vem à cabeça mesmo hoje, uns quatro anos, três defuntos, um amor verdadeiro e uma vida em Paris depois.

Quando desci do ônibus, vi outra agitação policial, um pouco pra frente. Para minha surpresa, meu amigo Paul estava cercado por motoqueiros da ROCAM. Ele estava meio desorientado. Pelo que entendi, haviam-lhe roubado a carteira, as chaves do carro, o documento, tudo. Eu comentei qualquer coisa como "a bruxa está à solta, heim?" e falei do rapaz morto dez, quinze minutos antes. Nisso, um dos policiais se empolgou e veio me contar a história. O homem havia tentado um sequestro relâmpago na Blazer azul, mas foi flagrado pelos policiais entrando no carro. Os policiais entraram em perseguição e foram surpreendidos por intenso tiroteio. Revidaram, mataram o suspeito sem atingir uma bala que fosse na dona do carro. "Uma bela ação!", exultou o fardado.

Uma colega dele se aproximou, sorrindo e propôs pra mim e pro Paul: "Adivinha o que esse aqui (o outro polícia) vai fazer quando chegar à delegacia!" Sei lá; vai cagar, comer coxinha, dar o furico. Pra mim tanto faz. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele respondeu: "Vou pedir pra ver o vagabundo! A coisa que eu mais gosto é ver vagabundo desfigurado!"

Só contei isso tudo porque tenho uma opinião muito específica sobre o caso do "Estrebucha, filho da puta!" que a Folha publicou na semana passada. O vídeo, que mostra um homem morrer aos pés da polícia, suscitou algumas reações efusivas. Dizem que vão dar uma punição exemplar, que os culpados serão encontrados, que esforços não serão poupados para resolver o caso; o comandante da PM pediu desculpas pra família do coitado ("cor padrão", diga-se de passagem) que foi conduzido ao outro lado sob brados de "estrebucha, filho da puta". Claro que acho que isso tudo tem que acontecer de fato. Não sou contra a punição. Mas que ela não mascare o que é fundamental: o comportamento sádico, psicótico, racista e economicamente desbaratado da Polícia Militar de São Paulo é endêmico, epidêmico, apoiado e incentivado pelo Estado. "Estrebucha, filho da puta!" é regra no nosso Estado de Exceção e não exceção no nosso Estado de Direito.

1 comentários:

O problema é que boa parte da sociedade assina embaixo desse tipo de ato... Acha lindo ver um fora-da-lei se foder, apanhar muito, morrer. Não é a toa que programas como o do Datena têm tanta audiência e fãs.

E assim a gente nunca avança, enquanto metade do povão acha mais do que justo um mulato tomar um monte de tiro na cara simplesmente por ser suspeito. Ninguém se importa se o cara é culpado ou não, se roubou para comer ou se é psicopata. Só querem ver o sangue jorrando de todos os furos do cara, num prazer sádico e ilusório, já que acreditam que desse modo a justiça está sendo feita.

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